A marcação a fogo, prática milenar que faz parte da criação gado de corte em todo o mundo, pode estar com os dias contados. Está em curso no país um movimento formado por fazendas, que estão abrindo as porteiras para que pesquisadores do Grupo Etco - Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal e da consultoria BE.Animal validem todos os benefícios que a redução da prática traz para o rebanho.
O professor da Unesp de Jaboticabal-SP, Mateus Paranhos, zootecnista, pós-doutor em bem-estar animal e coordenador do Grupo Etco listou em que casos e a quantidade de vezes que cada animal pode sofrer as marcas de fogo.
“Normalmente, existe o número de identificação individual, que varia de quatro a cinco dígitos, ou seja, cinco marcas. Mês e ano de nascimento, que pode variar de dois a quatro dígitos. A marca da fazenda, que é garantia de propriedade. A marca de brucelose, que é obrigatória por uma normativa do Ministério da Agricultura. E, em alguns casos, o número do touro pai do bezerro que nasceu. E tem, ainda, alguns que marcam cada parto da vaca, o que é completamente fora da razoabilidade. É como se não existisse planilha do Excel e tivesse que escrever tudo no corpo da vaca. Mas, o mais frequente, é a identificação individual, mês e ano do nascimento, que é o que chamam de carimbo, a marca da propriedade e a brucelose nas fêmeas. Antes de ser um dano ao couro, é uma agressão à pele do animal”, contabilizou.
Ao contrário do que parte dos pecuaristas pensa, a mudança não é difícil de se implementar dentro da porteira. “Para quê nós fazemos isso? É uma prática que vem do antigo Egito e nós estamos usando até hoje, quando já existem outras tecnologias que são mais eficientes, altamente viáveis, que não causam sofrimento ao animal e é menos exaustivo para os trabalhadores.
Infelizmente tem muitas coisas acontecendo no dia a dia da fazenda que passam como se fossem normais. E essa é a mensagem da Dra. Temple Grandin, que chama a atenção para quando o errado se torna normal. Às vezes tem que vir alguém de fora para dizer que não está tudo certo. Então abra seus olhos, os seus ouvidos, preste atenção, entenda o que está acontecendo e não fique tão fechado nas práticas antigas. A tecnologia existe, tem muito conhecimento, são tecnologias de processos. Nós estamos falando de manejo, de sistemas de criação, não estou vendendo um equipamento ou colocando um no mercado. Às vezes é uma mudança simples de atitude das pessoas ou de práticas de rotina do dia a dia que fazem um benefício enorme”, destacou Paranhos.
A Fazenda São Clemente, propriedade da Agropecuária Marcondes César, em São José dos Campos, interior de São Paulo, se inspirou no projeto desenvolvido na Agropecuária Orvalho das Flores, em Barra do Garças-MT e puxou mais uma fila da iniciativa para validar as vantagens da redução da marca a fogo no gado.
O criador Frederico Marcondes, titular da propriedade, exemplificou algumas das práticas tradicionais que foram sendo substituídas aos poucos por serem prejudiciais ao bem-estar dos animais. “Nós estamos sempre abertos às novidades, tecnologias e informações. Começamos a fazer inseminação artificial convencional. O que nós tínhamos que fazer à época? O uso do boi rufião. Você pegava um boi cruzado, fazia o desvio de prepúcio do animal, fazíamos vasectomia com grampo, fizemos com várias coisas. Nós operávamos entre 20 a 25 animais por ano e perdíamos dois, três, quatro pela cirurgia, com infecção. Com a tecnologia, nós fomos para a IATF, a inseminação artificial por tempo fixo e deixamos de fazer rufião e esse já foi um avanço. Em outro manejo, a mochação, nós mochávamos na desmama machos e fêmeas, mas depois percebemos que, como o macho tem um ciclo curto, de até 24 meses, não haveria necessidade, porque não havia animal se perpetuando por muito tempo na fazenda. Aí começamos a mochar somente as fêmeas. Mas por estarmos dentro de um programa de melhoramento genético, e um dos critérios de avaliação é o temperamento, observamos que os animais eram muito dóceis, muito mansos, que não representavam risco nem para os outros animais e nem para os funcionários. Deixamos, então, de fazer também a mochação. E com o advento do confinamento, o que percebemos? Antes nós fazíamos a castração dos machos porque fazíamos a engorda a campo, sistema extensivo. Mas, percebemos que, com o confinamento, poderíamos dar uma dieta rica em proteínas, balanceada, ajustada à era e à raça e que não precisaríamos mais castrar os animais. Deixamos de castrar os animais”, ilustrou Frederico.
O pecuarista confirmou que o mais recente exemplo de avanço em bem-estar animal na Fazenda São Clemente foi, justamente, a extinção da marcação a fogo e que o fim da prática trouxe benefícios em produtividade. “Por fim, introduzimos agora a marcação a ferro zero. Para que se tenha uma ideia, como nascem aqui 1.500 a 1.600 animais todos os anos e nós fazíamos 10, 12 marcações a ferro por animal, nós estamos deixando de fazer uma média de 18.000 marcações a ferro nos animais, substituindo a prática pelos brincos. Colocamos um brinco de um lado, numa orelha e, na outra orelha colocamos o botton com o mesmo número. Nós entendemos que, com o botton, a probabilidade de perda é muito pequena. Concluindo, hoje nós tocamos no animal quando ele nasce, para colocar o brinco, na vacina do primeiro dia e, depois, fazemos os protocolos sanitários, ou seja, as vacinações. Nada mais. O resto do tempo nós contemplamos os animais. São animais dóceis, eles respondem no peso se você der uma boa dieta, com altos índices de fertilidade. Então, nesses três cenários - cria, recria e engorda, temos altos índices, alta performance dentro da propriedade. Essas mudanças trouxeram resultado para a nossa equipe, para os animais e, por consequência, o resultado financeiro desejado”, aprovou o produtor.
O professor Mateus Paranhos lembrou também dos benefícios da substituição da prática para os vaqueiros e pecuaristas. “Estamos focando no bem-estar dos animais, mas também é uma contribuição que vai facilitar e melhorar muito a administração do negócio do pecuarista. Com animais estressados, ocorrem perdas e mais riscos e, consequentemente, uma administração mais complicada por conta de toda essa dificuldade. Então, a iniciativa busca trazer também esse maior controle das condições de criação e de manejo, que obviamente tem um impacto também no negócio”, analisou.
“Quando falamos de bem-estar animal, nós entendemos que essa é uma questão ética. E nós realmente cuidamos do animal em toda a cadeia, não só na parte de transporte até a fábrica, como também na ponta, nas boas práticas de bem-estar. E a redução da marca a fogo é uma delas. É uma agressão que vamos diminuir cada vez mais, para uma marca. Esse é o objetivo do projeto que estamos apoiando atualmente. A BE.Animal, que é a empresa que está fazendo esse projeto nas quatro fazendas parceiras, que inclusive fazem parte do Fazenda Nota 10, está conduzindo esse trabalho e vai mostrar para as fazendas parceiras, por meio de guias e tutoriais, como fazer isso. Porque hoje muita gente realmente acha importante a redução da marca a fogo, mas tem dúvidas de como fazer na prática”, concluiu Everton Andrade, especialista em bem-estar animal do Friboi, empresa apoiadora do projeto.
Publicação: Giro do Boi
Data: 09/06/2021